Meu mestre mandou: O mundo zumbi, a educação e a necessidade de concordância

Ontem, na livraria, vi o livro da Tiburi, "Como conversar com um fascista". Não entendo muito a escolha da palavra "conversar", mas vá lá... Não tenho intenção de ler, mas quem sabe tome coragem depois. Quanto ao cinismo do "fascistas"... Bocejos. Nem vale a pena discutir.

Usei e uso textos (publicados em revistas e jornais) da Tiburi e semelhantes quando dou aulas. Porque os temas são bem caros ao Enem e a qualquer conversa hoje de quem quer ser bacaninha. O que eu fazia? Discutia apenas estrutura, acertos, fragilidades e contradições argumentativas.

Eu não tinha como ler aquilo e ainda dizer que era maravilhoso. Mas lia. Sem fazer doutrinação alguma, eu trabalhava, como já disse, parágrafos, relações entre parágrafos, a defesa da tese, fragilidades, contradições etc., coisas que interessam a uma boa redação. E não tinha problema algum se os alunos concordavam com esses textos nas suas redações (mesmo porque, durante a leitura dos textos e discussão prévia, os alunos citavam o professor X de História ou o professor Y de Literatura, repetindo o que já tinham aprendido como verdade em sala de aula, e que já estavam, portanto, bem posicionados sobre tais temas, de modo que, mesmo ausentes do meu espaço, esses professores ditavam o rumo da leitura dos textos), mas tinha um troço se, para concordar, eles caíam em contradições e outras marmotas. Mas as mais frequentes contradições estavam justamente na discordância que se pensava concordância. Essas me intrigavam muito, e comecei a gastar boa parte do meu tempo livre analisando esses casos.

Difícil entender? É. Mas isso não está apenas nos textos dos adolescentes, é muito comum ver adultos fazendo a mesma coisa. Os motivos talvez sejam vários. Em alguns percebo só falta de malícia ou de maturidade de leituras para sacar que nem todo texto serve para sustentar uma opinião específica. Às vezes, os textos mais à mão sobre um assunto são justamente aqueles que mais fragilizam meu ponto de vista. É uma falta de traquejo e de conhecimento. Num país de analfabetos funcionais, esse é o mínimo dos problemas. Mas há também aquele outro grupo que, embora discorde de muita coisa, não quer ficar de fora, não quer ser o ponto fora da curva, então fica buscando temas e fatos em que seja fácil mostrar sua concordância, geralmente indignada e bem caricata. É o pessoal do clube, do clube dos legais, que vai lá e compra o pacote de sócio e fica ali rodando, sorrindo, socializando.

Devem existir outros tipos. Mas, entre os adolescentes, o primeiro tipo é raríssimo: Pessoas que têm consciência de suas opiniões e valores, e os assumem sem problemas, mas que se perdem entre informações e formadores de opiniões, ou seja, não sabem muito se mover entre eles. Os adolescentes não fazem muito parte desse grupo. Geralmente estão no segundo tipo. Em sala de aula, uma das sedes do clube, poucas vezes eles falam, debatem de fato, questionam, estão lá mais para concordar com o professor com quem simpatizam, repetir (e isso é que é tido hoje como "debate", como "pensamento crítico" pelos professores orgulhosos em sala), se emocionar e, claro, sair para a luta, principalmente discursiva. Aí vem a bendita redação, o texto dissertativo-argumentativo... É dado o tema e, ali, sozinhos, eles têm de se posicionar, colocar o tal ponto de vista. É aí que, muitas vezes, eles começam a escorregar. Primeiro porque possuem um problema grave de informação, não pela falta, mas pelo excesso, mas disso todo mundo sabe. Eles recebem muitas informações, mas não conseguem dominá-las bem e, se dominam, não conseguem articular, selecionar tudo isso, trazer o conhecimento adquirido para sustentar suas vidas e opiniões. Sem os discursos prévios, sem a orientação do que é bom e do que é mau, sem o "pensamento crítico" do professor conduzindo o "pensamento crítico" dos pupilos (e nisso a substituição da palavra professor por educador é a das mais honestas já feitas pela intelectualidade esquerdista), eles acabam balbuciando ou mudos. Não que não tenham opinião. O que eles não têm, me parece, é segurança. Segurança como autores de um discurso, digamos, autêntico, para expor uma opinião que se erga sobre um conhecimento mais consistente e enraizado, no sentido de dominado, não apenas aprendido. E acho que a culpa é justamente dos professores e outros formadores de opinião, como as Tiburis por aí. Trabalhando com redações por algum tempo já, tenho certeza de que o que falta aos alunos é domínio, é segurança de conhecimento. O famigerado medo que têm da redação tem a ver com isso, mas também com o medo de não serem aceitos por seus interlocutores. Daí a repetição e a concordância tão caras hoje. O problema se revela ali, na solidão da folha em branco que será avaliada - pelo professor ou pela banca do concurso.

Assim, o primeiro ponto, o problema da informação, tem a ver com o segundo: os alunos sabem que a opinião deles não basta ou não é tão bem sustentada, talvez também saibam, no fundo, que a opinião deles não importa em si mesma. Em grande parte, o que noto são opiniões como defensivas que poderiam ser traduzidas por: “Eu concordo, porque aprendi que aquele discurso X, sobre o tema tal, vindo da pessoa tal é o único bom, é o único justo etc., como eu não posso deixar de querer ser também bom e justo, então...”. E aí está a cilada. Porque opinião todos têm, basta você começar a puxar, a dar segurança, eles colocam suas opiniões, tateando frases, deixando vazios, construindo tautologias, mas vão traçando seus pontos de vista, com um traçado mais forte em alguns, mais fraco em outros, dependendo da segurança e desenvoltura que vão descobrindo em suas próprias ideias. Acho que por isso mesmo é muito comum que, expressamente colocadas, as teses das redações argumentativas estejam presentes frequentemente nos últimos parágrafos, isso quando estão lá. E, a depender dos argumentos que o aluno usou antes, a revelação de seu ponto de vista coloca tudo o que veio antes a perder. Ele cai na cilada de ser sócio de um clube que, de fato, não o aceita como membro. E ele mesmo não se dá conta disso. Mas, como eu disse, nessa mesma cilada também caem os adultos nas conversas nossas de cada dia.

Às vezes o clube faz de conta que não percebe, afinal você é uma pessoa educada, paga em dia a mensalidade do título, bem ou mal você repete todos os discursos, lê apenas o que dizem que você deve ler, pensa só o que dizem que é legal pensar. Mas você não é um deles. E só você não sabe disso. Talvez outros sócios naturais também não saibam (ainda). Porém, basta que algum dia você se desvie um pouco da repetição e resolva colorir o texto com seus valores, achando que não há nenhuma contradição entre uma coisa e outra, aí é questão de tempo. Isso é o que vejo acontecer nas redações de muitos alunos, mas também nas conversas por aí.

E aí vinham diálogos sempre iguais: 

"Bem, você passou o texto todo só dando informações sobre o tema, as informações que a Tiburi (ou qualquer outro autor lido) usa como argumentação para a ideia que ela defende. Ou seja, todas as suas informações indicam que você concorda com ela, embora essa concordância não esteja explicitada no início do texto, mas sabemos, como leitores, que em algum momento ela deverá aparecer categoricamente no seu texto ou esperamos por isso. Só no fim você expõe a sua opinião de fato sobre o tema, ela é quase sua última frase. E aí vem o susto. Você contradisse tudo o que já falou antes, inclusive a concordância que tinha com a autora. Ou seja, a Tiburi discorda de você. É justamente essa opinião, esse valor que você sustenta, que ela está criticando no texto dela. O problema aqui não é pensar isso ou aquilo, o problema é que não há coerência no seu texto. Percebeu que você fez isso?”

“Não.”


Sozinhos não percebiam mesmo. Alguns, a maioria, se davam conta depois de um certo trabalho de analisar parágrafo por parágrafo. Outros apenas confiavam em mim e refaziam o texto. Mas a maioria, quase sempre, retirava a tese discordante, modificava o próprio ponto de vista para manter os argumentos da Tiburi. Talvez para poupar trabalho, porque manter seus próprios pontos de vista pediria que buscasse informações que de fato sustentassem essas ideias. Talvez a explicação seja simples assim. Mas tenho mais inclinação a achar que a escolha de abortar a opinião, em vez de ter o trabalho de defendê-la, é menos pelo trabalho (que se começaria do zero) que pela manutenção da carteira do clube.

Cheguei a uma conclusão trabalhando com redação e conversando com pessoas diversas: boa parte das pessoas, acredito que a maioria, digamos que em essência, em seus valores, discorda de muita coisa que está na moda concordar, mas cai na onda de que o bem envolve uma certa massificação de temas e opiniões predeterminadas a respeito deles e que basta olhar para o mestre para saber qual caminho seguir (sim, é como um profetismo raso). E que alguém sendo ‘gente boa’ não pode ser um "fascista" aos olhos de uma 'engajada e justa' Tiburi ou semelhantes. E essas pessoas são gente boa mesmo. Mas são umas bestas quando esperam pela aprovação das Tiburis da vida, e as salas de aula estão cheias de professores Tiburis. Essas pessoas gente boa vão se tornando papagaios de um discurso que nelas soa como gritos e cantos de menininhas uniformizadas em homenagem a ditador coreano (recentemente, a campanha do Trump aderiu à moda bizarra das crianças zumbis). Assim, não se dão conta de que, para as Tiburis da vida e pra quem é simplesmente atento, seus valores, ou laivos desses valores, sempre aparecem no fim.


Os textos das Tiburis riem sarcasticamente delas, mas elas não se dão conta.




Por Fabricia Miranda

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